BONECA DE MILHO
Elany Morais
Eloísa era uma criança, de aproximadamente cinco anos de idade que
sonhava em ter uma boneca com cabelos, mas a vida de extrema pobreza não
permitia a realização desse simples sonho. Acontece que Eloisa não era como
qualquer outra criança, era especial na sua pele pálida, franzina, escassa de
sangue e de quase tudo, menos de imaginação. Nos dias claros, o vento tinha
sempre a missão de sacudir suas tranças longas e loiras. A sua voz parecia o
som surdo de um lago manso. Porém, nos dias mais sombrios, este som era
praticamente inaudível. Mas ela continuava com o pensamento fixo no desejo de
possuir uma boneca com cabelos apesar das privações.
Sim, a privação sempre presente parecia ser o destino da pequena heroína
que foi gerada no acaso dos infortúnios de uma mãe que não sabia amar os seus
rebentos e, mesmo tão pequena, já percebia que, nas casas vizinhas,
sobressaiam-se as figuras de um homem e de uma mulher amorosos que costumavam
ser chamados de pai e mãe pelos pequenos como ela. Pobre Eloisa, nem pai ela
tinha e parecia que essa ausência era apenas o começo de muitas ausências e
privações.
A verdade é que Eloisa tinha que lidar o tempo todo com a falta. Falta
de pai, falta de uma mãe amorosa e protetora, falta de alimento para o corpo e
para a alma, falta de amor, respeito, carinho, cuidados básicos que uma criança
precisa para crescer saudável física e emocionalmente. O que se pode dizer é
que Eloisa precisava ser muito resistente apesar da carência e do medo que
rondavam a sua vida constantemente.
Nada parecia um conto de fadas na vida de Eloisa, raras vezes, ao
amanhecer, ela despertava com tranquilidade. A sua rotina era ouvir, nas primeiras
horas da manhã, a voz seca, fria e ríspida da mãe gritando por ela. Eloisa
sempre obediente e disciplinada, não compreendia as razões pelos maus-tratos
que recebia da mãe descompensada e constantemente raivosa. Era nesse momento
que tudo doía nela. O vazio se agigantava. Timidamente, lançava um olhar
piedoso e temeroso para a mãe, na tentativa de encontrar um consolo, uma esperança,
mas cada tentativa de busca de proteção na pessoa que a deveria proteger, era
um fracasso porque esta sempre a repreendia com olhares frios ou com castigos
físicos.
Mas para Eloisa os castigos físicos pelos quais passava doíam menos do
que os psicológicos, pois em seu desespero ela sempre apressava o ato de
apanhar para não ter que ouvir as injúrias, os xingamentos da mãe. Contudo,
esse mar de tortura, onde habitava Eloísa, não tirava a sua capacidade criativa
e muito menos o desejo em possuir uma boneca com cabelos, de sonhar, de voar,
de alçar voos para os mais distantes lugares. Eloisa se agarrava aos sonhos e
nos sonhos ela via apagar todas as cicatrizes físicas, em suas costas, deixadas
pelas surras que recebia da mãe. Ela não mais sentia um cabo de vassoura descer
em sua cabeça por ter esquecido de se calçar ou por não ter pedido a bênção
para mãe. Também não ouvia mais as pessoas de sua casa dizerem que ela era
lenta, preguiçosa, imprestável. Enfim, em seus sonhos, ela não era objeto de
satisfação sádica da mãe e das irmãs, nem motivo de zombaria para quem quer que
fosse daquela casa.
As pessoas pouco sensíveis entorno de Eloísa julgavam o seu
comportamento de maneira destrutiva. Era vista como alheia, lenta, sem viço,
sem vontade, sem força e sem coragem de ousar ou desejar. Fossem quais fossem
as razões de Eloísa assim parecer aos olhos dos outros, dessa forma, o certo é
que ninguém possuía mais desejo e mais determinação do que ela. Eloísa ousou
querer. Em meios as poeiras e matos secos retorcidos, sem estrada e sem sonhos,
ela quis, não muito, mas apenas uma boneca que possuísse cabelos. O que era
drama infantil, tornou-se uma história de poder imaginativo e de grandes
realizações, porque possuir uma boneca com cabelos era tudo o que Eloísa queria.
Esse desejo se agigantava no peito. Vinham-lhe promessas fortes, mas a
fortaleza dessas promessas só durava o que dura os sonhos: muitas das vezes,
menos de a metade de uma noite. Isso porque na casa interna e externa de
Eloísa, o nada ganhava formas inimagináveis. Mas quando, percebeu que somente
ela seria capaz de realizar seus sonhos, o nada transmutou em tudo, o tudo
concreto, palpável.
E foi num dia quente, que Eloísa saiu, contando os passos, para que uma
ideia lhe surgisse. Ideia que propiciasse a realização de seu grande encontro
com a boneca de cabelos. Foi nesse vagar, que deparou-se com um milharal. Ela
não acreditou no que viu: uma boneca com cabelos. Para muitos que foram fartos
de toda sorte de brinquedos, quando criança, podem achar esse fato uma
banalidade, mas para Eloísa, possuir uma boneca com cabelos era uma grande
conquista. Seu desejo fora realizado, quando ela viu uma espiga de milho, que
aos olhos dela, era uma linda boneca, com longos cabelos. Os dois pequenos olhos
verdes faiscaram diante da espiga de milho.
Nesse momento, ela agarrou-se à espiga de milho e tudo se transformou em
festa. Logo, percebeu que sua boneca precisava de roupas especiais. Pensou,
pensou... Como poderia fazer roupas? Sem muita demora, lembrou dos recortes de
pano jogados no lixo pela sua mãe. Então, correu, apressadamente, amparando a
boneca sobre o peito, com muito cuidado, para proteger os cabelos do seu novo
brinquedo. Ao chegar em casa, ofegante, pôs-se a remexer objetos que para
muitos seriam imprestáveis.
- Pronto! Disse ela.
-Encontrei a mais bela roupa para minha boneca que tem cabelos!
Eloísa havia encontrado um pedaço de pano duro, retorcido, gasto pela
ação do sol, do vento e da chuva. Mas para ela era tudo que precisava. De
imediato, viu um pedaço de barbante, e pensou:
- Está tudo completo.
Então, pegou o sabugo de milho, que na verdade era o seu mais grandioso
brinquedo e o embrulhou sobre o pedaço de pano, que foi encontrado a muito
custo. O barbante foi o remate final. Eloísa amarrou o pano envolta do sabugo,
e agora sua boneca estava perfeitamente vestida.
-Pronto, pensou ela.
Eloísa deteve-se por alguns instantes bastante contemplativa. Ela olhava
fixamente para os cabelos da espiga de milho. Mas era um olhar de grande
satisfação. Ela mais conversava do que murmurava consigo mesma. Eloísa, num
estado de encantamento, entendia que aquele brinquedo era ela em si, sem que
nada lhe doesse. Nesse momento, Eloísa fazia grandes descobertas: descobria o
prazer, e principalmente, o poder que possuía de moldar a realidade em seu
benefício. Agora, ela sabia fabricar suas realizações sem sofrer do mal de não
entender o que se sente. Não se traía diante da boneca. Não permitia que o
desamor alheio lhe roubasse aquele momento sublime. Eloísa não abriu porta para
sentimentos contraditórios, para convulsões conflituosas, para dores
irredutíveis, por fim a alegria tomou conta de Eloísa.
Todos os direitos reservados a Elany Morais
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