Sou educadora e escritora

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

BONECA DE MILHO

BONECA DE MILHO
Elany Morais

Eloísa era uma criança, de aproximadamente cinco anos de idade que sonhava em ter uma boneca com cabelos, mas a vida de extrema pobreza não permitia a realização desse simples sonho. Acontece que Eloisa não era como qualquer outra criança, era especial na sua pele pálida, franzina, escassa de sangue e de quase tudo, menos de imaginação. Nos dias claros, o vento tinha sempre a missão de sacudir suas tranças longas e loiras. A sua voz parecia o som surdo de um lago manso. Porém, nos dias mais sombrios, este som era praticamente inaudível. Mas ela continuava com o pensamento fixo no desejo de possuir uma boneca com cabelos apesar das privações.

Sim, a privação sempre presente parecia ser o destino da pequena heroína que foi gerada no acaso dos infortúnios de uma mãe que não sabia amar os seus rebentos e, mesmo tão pequena, já percebia que, nas casas vizinhas, sobressaiam-se as figuras de um homem e de uma mulher amorosos que costumavam ser chamados de pai e mãe pelos pequenos como ela. Pobre Eloisa, nem pai ela tinha e parecia que essa ausência era apenas o começo de muitas ausências e privações.

A verdade é que Eloisa tinha que lidar o tempo todo com a falta. Falta de pai, falta de uma mãe amorosa e protetora, falta de alimento para o corpo e para a alma, falta de amor, respeito, carinho, cuidados básicos que uma criança precisa para crescer saudável física e emocionalmente. O que se pode dizer é que Eloisa precisava ser muito resistente apesar da carência e do medo que rondavam a sua vida constantemente.

Nada parecia um conto de fadas na vida de Eloisa, raras vezes, ao amanhecer, ela despertava com tranquilidade. A sua rotina era ouvir, nas primeiras horas da manhã, a voz seca, fria e ríspida da mãe gritando por ela. Eloisa sempre obediente e disciplinada, não compreendia as razões pelos maus-tratos que recebia da mãe descompensada e constantemente raivosa. Era nesse momento que tudo doía nela. O vazio se agigantava. Timidamente, lançava um olhar piedoso e temeroso para a mãe, na tentativa de encontrar um consolo, uma esperança, mas cada tentativa de busca de proteção na pessoa que a deveria proteger, era um fracasso porque esta sempre a repreendia com olhares frios ou com castigos físicos.

Mas para Eloisa os castigos físicos pelos quais passava doíam menos do que os psicológicos, pois em seu desespero ela sempre apressava o ato de apanhar para não ter que ouvir as injúrias, os xingamentos da mãe. Contudo, esse mar de tortura, onde habitava Eloísa, não tirava a sua capacidade criativa e muito menos o desejo em possuir uma boneca com cabelos, de sonhar, de voar, de alçar voos para os mais distantes lugares. Eloisa se agarrava aos sonhos e nos sonhos ela via apagar todas as cicatrizes físicas, em suas costas, deixadas pelas surras que recebia da mãe. Ela não mais sentia um cabo de vassoura descer em sua cabeça por ter esquecido de se calçar ou por não ter pedido a bênção para mãe. Também não ouvia mais as pessoas de sua casa dizerem que ela era lenta, preguiçosa, imprestável. Enfim, em seus sonhos, ela não era objeto de satisfação sádica da mãe e das irmãs, nem motivo de zombaria para quem quer que fosse daquela casa.

As pessoas pouco sensíveis entorno de Eloísa julgavam o seu comportamento de maneira destrutiva. Era vista como alheia, lenta, sem viço, sem vontade, sem força e sem coragem de ousar ou desejar. Fossem quais fossem as razões de Eloísa assim parecer aos olhos dos outros, dessa forma, o certo é que ninguém possuía mais desejo e mais determinação do que ela. Eloísa ousou querer. Em meios as poeiras e matos secos retorcidos, sem estrada e sem sonhos, ela quis, não muito, mas apenas uma boneca que possuísse cabelos. O que era drama infantil, tornou-se uma história de poder imaginativo e de grandes realizações, porque possuir uma boneca com cabelos  era tudo o que Eloísa queria.

Esse desejo se agigantava no peito. Vinham-lhe promessas fortes, mas a fortaleza dessas promessas só durava o que dura os sonhos: muitas das vezes, menos de a metade de uma noite. Isso porque na casa interna e externa de Eloísa, o nada ganhava formas inimagináveis. Mas quando, percebeu que somente ela seria capaz de realizar seus sonhos, o nada transmutou em tudo, o tudo concreto, palpável.

E foi num dia quente, que Eloísa saiu, contando os passos, para que uma ideia lhe surgisse. Ideia que propiciasse a realização de seu grande encontro com a boneca de cabelos. Foi nesse vagar, que deparou-se com um milharal. Ela não acreditou no que viu: uma boneca com cabelos. Para muitos que foram fartos de toda sorte de brinquedos, quando criança, podem achar esse fato uma banalidade, mas para Eloísa, possuir uma boneca com cabelos era uma grande conquista. Seu desejo fora realizado, quando ela viu uma espiga de milho, que aos olhos dela, era uma linda boneca, com longos cabelos. Os dois pequenos olhos verdes faiscaram diante da espiga de milho.

Nesse momento, ela agarrou-se à espiga de milho e tudo se transformou em festa. Logo, percebeu que sua boneca precisava de roupas especiais. Pensou, pensou... Como poderia fazer roupas? Sem muita demora, lembrou dos recortes de pano jogados no lixo pela sua mãe. Então, correu, apressadamente, amparando a boneca sobre o peito, com muito cuidado, para proteger os cabelos do seu novo brinquedo. Ao chegar em casa, ofegante, pôs-se a remexer objetos que para muitos seriam imprestáveis.
- Pronto! Disse ela.
-Encontrei a mais bela roupa para minha boneca que tem cabelos!

Eloísa havia encontrado um pedaço de pano duro, retorcido, gasto pela ação do sol, do vento e da chuva. Mas para ela era tudo que precisava. De imediato, viu um pedaço de barbante, e pensou:

- Está tudo completo.

Então, pegou o sabugo de milho, que na verdade era o seu mais grandioso brinquedo e o embrulhou sobre o pedaço de pano, que foi encontrado a muito custo. O barbante foi o remate final. Eloísa amarrou o pano envolta do sabugo, e agora sua boneca estava perfeitamente vestida.

 -Pronto, pensou ela.

Eloísa deteve-se por alguns instantes bastante contemplativa. Ela olhava fixamente para os cabelos da espiga de milho. Mas era um olhar de grande satisfação. Ela mais conversava do que murmurava consigo mesma. Eloísa, num estado de encantamento, entendia que aquele brinquedo era ela em si, sem que nada lhe doesse. Nesse momento, Eloísa fazia grandes descobertas: descobria o prazer, e principalmente, o poder que possuía de moldar a realidade em seu benefício. Agora, ela sabia fabricar suas realizações sem sofrer do mal de não entender o que se sente. Não se traía diante da boneca. Não permitia que o desamor alheio lhe roubasse aquele momento sublime. Eloísa não abriu porta para sentimentos contraditórios, para convulsões conflituosas, para dores irredutíveis, por fim a alegria tomou conta de Eloísa.

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